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Jaguariaíva, Paraná, Brazil
"Cada pessoa deve escolher quanta verdade deseja suportar" (Nietzsche)

terça-feira, 10 de agosto de 2010



Brincadeiras cantadas e educação
    Como o brincar pode ser visto primeiramente como produção cultural predominantemente imaginária, dotada de significado, seu valor torna-se inconteste na educação informal. Em particular, as brincadeiras cantadas permitem a associação (tanto espontânea quanto organizada) de gesto e sonoridade. Esta possibilidade, reconhecidamente prazerosa no contexto infantil, permite que saberes culturais tradicionais sejam transmitidos a cada geração.
    Uma matéria realizada por enviados da Folha de São Paulo a estados como Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Pernambuco, Santa Catarina e Pará, traz dados interessantes acerca das brincadeiras realizadas em todo o país. Felinto (2000) constata que "cantigas e rodas infantis conhecidas desde o século XVII resistem, da mesma forma ou com algumas adaptações, nas cinco regiões do Brasil, ajudando as crianças a entender o mundo".
    Costa (2000) pergunta e, na seqüência, posiciona-se: "De onde vêm as brincadeiras? Ninguém responde com certeza. Elas são universais e fazem parte da cultura popular - como a literatura oral, a música, a culinária". Entende ser impossível dar a palavra final sobre o surgimento de uma brincadeira, pois ela agrega variantes e se transforma ao longo do tempo. Faz menção aos jogos infantis presentes na Odisséia de Homero, às bonecas colocadas nos túmulos de crianças gregas (Séc. IV a.C.), aos piões, bonecas, soldadinhos, histórias de monstros e canções de ninar trazidas pelas famílias européias que chegavam ao Brasil, às danças africanas e suas criaturas assustadoras (tutu-marambá, nironga), às danças, músicas e lendas indígenas, dentre outras, revelando a dificuldade em saber a origem de determinada brincadeira, brinquedo ou jogo, dadas as mesclas culturais que vão ocorrendo frente o processo de construção cultural. Assim, mesmo sem uma noção clara da origem das brincadeiras cantadas é possível visualizá-la a partir das mesclas culturais entre branco, negro e índio que conduziram à criação de formas de representação corporal, transmitidas e (re)significadas ao longo dos séculos.
    Noda [s.d] esclarece que é impossível determinar com precisão a origem das brincadeiras cantadas1. Parece que muitas delas são restos de antigas cerimônias que passaram a jogos de adultos e que, posteriormente, foram transformados em divertimentos de crianças. A esse respeito, Pimentel (2003) elucida que as brincadeiras cantadas são bastante antigas, podendo ser uma interpretação infantil das danças circulares sagradas. As crianças cantavam as músicas e o elemento lúdico teria impulsionado a realização de alterações nestas danças, resultando em novas formas de dançar.
    As brincadeiras cantadas fundem musicalidade, dança, dramatização, mímica e jogos, (dependendo do enfoque a ser priorizado em cada atividade), representando um conhecimento de grande contribuição à vida de movimento da criança. Para Noda [s.d], as brincadeiras cantadas integram o conjunto de cantigas próprias da criança e por ela entoadas em seus brinquedos ou ouvidas dos adultos quando pretendem fazê-la adormecer ou instruí-la, transmitidas pela tradição oral. No entender da autora, alguns dos objetivos visados com a aplicação dos brinquedos cantados seriam: auxiliar no desenvolvimento da coordenação sensório-motora; educar o senso rítmico; favorecer a socialização; estimular o gosto pela música e pelo movimento; perpetuar tradições folclóricas e incentivar o civismo; favorecer o contato sadio entre indivíduos de ambos os sexos; disciplinar emoções: timidez, agressividade, prepotência; incentivar a auto-expressão e a criatividade. Vale ressaltar que tais objetivos encontram-se atrelados a um outro momento histórico, em que "incentivar o civismo" e "disciplinar emoções" eram ressaltados na educação brasileira, sobretudo pela herança do regime militar.
    É importante, em meio a esses achados empíricos da autora, destacar que, embora a brincadeira cantada enseje em si mesma o objetivo de seu aprendizado, por meio dela é possível tratar pedagogicamente outros conteúdos. A principal intermediação estaria no desenvolvimento do ritmo e da expressão, ou seja, o conhecimento das percepções e habilidades necessárias ao corpo, bem como à produção de movimentos correspondentes às vibrações sonoras e aos significados daquilo de que é cantado.
    Contudo, mesmo sendo inegável o seu valor cultural, social e educacional é importante que o educador esteja atento às simbologias inerentes a muitas canções, refletindo sobre o sentido/significado das letras, especialmente ao lidar com alunos que se encontram numa faixa etária em que é possível fomentar discussões dessa natureza. A esse respeito, Pimentel (2003, p. 20) enfatiza:
Atualmente, mesmo com a invenção de novas músicas infantis, as brincadeiras cantadas são muito comuns entre crianças, especialmente no interior do país. Um aspecto inegável da relação entre o lúdico e a cultura está na constante recriação dessas músicas, que mudam conforme a geração e a localidade. Embora essas atividades mereçam valorização, muitas canções trazem ranços de discriminação sexual, racial ou econômica que precisam ser repensadas quanto ao seu conteúdo.
    Entretanto, a realidade indica que as mudanças inseridas exclusivamente pelos educadores - sem a cumplicidade da criança - parecem não surtir efeito no cotidiano. Felinto (2000) esclarece que modificações externas feitas pelos adultos para algumas músicas que integram as brincadeiras infantis parecem não se fixar, como verificado na reportagem supracitada. É o que observa, por exemplo, para o que chama de "versão politicamente correta" que alguns estudos registram para a cantiga de roda "Atirei o pau no Gato", como segue:
Não atire o pau no ga-tô-tô
Por que isso-sô
Não se faz-faz-faz
O gati-nhô-nhô
É nosso ami-gô-gô
Não se deve
Maltratar os animais
Miau!
    O fato desta versão não ser encontrada entre as crianças nas regiões pesquisadas, entende a autora, é um indício de que o folclore infantil resiste à modernidade, às suas ideologias e tecnologias com mais vitalidade do que geralmente se imagina. Nesse sentido, esclarece Fernandes (1989, p. 62), as brincadeiras de roda não se tratam de uma mera sobrevivência, mas de uma continuidade sócio-cultural. "O contexto histórico-social se altera, é verdade; contudo, preservaram-se condições que asseguraram vitalidade e influência dinâmica aos elementos folclóricos". Não se busca conservar fórmulas, mas representações da vida, dos valores, do mundo simbólico e moral da criança, perpetuadas pelo folclore.
    Portanto, a recriação de uma atividade lúdica dentro da educação não-formal (recreação) e educação formal (escola) não pode ser desencadeada sem um pleno conhecimento e, inclusive, vivência daquilo que se deseja superar (PIMENTEL, 2003). Em síntese, não se pode estabelecer o 'vir-a-ser' no processo educativo formal antes de ir ao encontro das 'coisas como elas são' no domínio da manifestação popular. Embora cada realidade requeira uma práxis própria, é possível estabelecer alguns encaminhamentos nesse sentido. Parece-nos relevante ao educador, no trato com esse conhecimento, estruturar metodologicamente suas aulas para:
  1. despertar o interesse dos alunos pelas manifestações culturais e pelo reconhecimento dos temas sugeridos e desenvolvidos nas brincadeiras;
  2. entender a brincadeira cantada como meio de educação, ludicidade, desenvolvimento rítmico, musical e gestual de contribuição ao mundo de movimento dos indivíduos;
  3. perspectivar a brincadeira cantada como fonte de simbologias e possibilidade de interpretação de sentidos e conotações que possam sugerir;
  4. visualizar a brincadeira cantada como fonte de pesquisa e conhecimento, sobretudo das transformações do próprio brincar, da infância e do lúdico;
  5. oportunizar aos alunos o contato com brincadeiras cantadas diversificadas que foquem tanto o jogo, quanto a dança, a dramatização e a mímica, enriquecendo as suas possibilidades culturais.
    Para o trabalho com as brincadeiras cantadas é importante ainda considerar: ensino da letra e discussão do tema abordado (dependendo da faixa etária); contextualização da brincadeira quando possível (época em que foi criada, formas diferenciadas de realização e transformações observadas); ensino da melodia; construção da gestualidade de forma coletiva (professor e aluno) ou sugestão de condução dada pelo professor e, após, modificação da atividade pelos alunos, recriando a brincadeira e levando a novas formas de estruturação da mesma. Podem ser realizadas movimentações que tenham relação com a letra (forma de dramatização) ou que apresentem um gestual diferente do que a letra solicita. Podem ser apresentados trabalhos escolares sobre brincadeiras cantadas já realizadas por pais e avós das crianças, ou ainda festivais para exibição das atividades selecionadas pelo grupo. É possível utilizar a estratégia de resolução de problemas para recriar coreografias e letras tradicionais das brincadeiras cantadas. Para ilustrar, o simples fato de ser encarregado de mudar o ritmo da canção ou o posicionamento do grupo na roda pode desencadear posturas ativas, críticas e criativas, seja pelo processo (a forma como os alunos se organizam para resolver os problemas), ou pelo produto (os movimentos e ritmos novos advindos desse processo construtivo).
    Não obstante esse conteúdo ser melhor correspondido na primeira infância, o brincar permanece noutras fases da vida. Por isso, entendemos que algumas brincadeiras, especialmente aquelas que não tocam diretamente o mundo infantil por suas letras e forma de representação gestual, podem perfeitamente transitar por todas as faixas etárias, inclusive entre os adolescentes. E qual a forma de saber quais as brincadeiras que se adequam a essa faixa etária? Uma das possibilidades é perceber a construção rítmica, as letras e formas de representá-la corporalmente. Outra é experimentar. O acúmulo de vivências poderá contribuir para que o próprio educador possa identificar as brincadeiras que transitam facilmente por diferentes faixas etárias ou não, trazendo a flexibilidade necessária.
    Um aspecto importante a ser lembrado na distribuição didática da brincadeira cantada seria favorecer a pluralidade de formas desse manifestar-se. Além de organizá-las conforme conteúdo e origem sociocultural e étnica, é possível considerar os diferentes tipos de brincadeiras cantadas. Uma divisão comumente observada em alguns pesquisadores, a exemplo de Noda [s.d], está assim distribuída: brinquedos de roda (Ciranda cirandinha); brinquedos de grupos opostos (Mocinhas da Europa); brinquedos de fileira (Passarás, não passarás); brinquedos de marcha (Marcha soldado); brinquedos de palmas (Pirulito que bate bate); brinquedos de pegar (Vamos passear no bosque); brinquedos de esconder (Balança-caixão); brinquedos de cabra-cega (A gatinha parda); chamadas para brinquedo (Ajunta povo para brincar); cantigas para selecionar jogadores (Um no ni é de po, politana).
    Tal classificação é interessante como forma de percepção das variações existentes em torno das brincadeiras e da importância de levar o aluno a vivenciar as suas inúmeras possibilidades (roda, fileira, esconde-esconde, pega-pega, e outros), assim como visualizar aquelas que mais se aproximam dos jogos ou das mímicas, danças e dramatizações. Entretanto, as divisões cada vez mais acentuadas podem gerar uma certa fragmentação no trato com o conhecimento a ponto do educador não conseguir visualizar as brincadeiras a não ser por essa estruturação. O fato de algumas brincadeiras se enquadrarem em mais de uma classificação também pode gerar certas confusões.
    O incentivo ao desenvolvimento de pesquisas pelas crianças com seus familiares e amigos, resgatando brincadeiras cantadas realizadas no passado, bem como aquelas que as próprias crianças concretizam na atualidade, constitui possibilidade pedagógica de fazer com que a mesma se veja como parte do processo educacional, contribuindo com a sistematização e organização de um acervo que revela brincadeiras populares tradicionais e contemporâneas, bem como as transformações do "brincar". Além do mais, este material pode se tornar parte essencial do trabalho docente e fonte de pesquisa a estudiosos que se voltam para este campo do conhecimento.
    Tratam-se de sugestões que podem auxiliar o professor a trabalhar com as brincadeiras cantadas, embora outras possibilidades de ensino possam ser configuradas a partir de realidades diversas.